Os Visionários

4o post da série sobre a história dos computadores - a visão de Charles Babbage e Ada Lovelace

Os Visionários: Babbage e Ada Lovelace

Em nosso post anterior, exploramos como o tear de Jacquard revolucionou a indústria têxtil e introduziu o conceito fundamental de programação através de seus cartões perfurados. Hoje, nossa jornada pela história dos computadores nos leva à Inglaterra do século XIX, onde dois notáveis visionários iriam conceber ideias tão avançadas que o mundo precisaria esperar mais de um século para vê-las plenamente realizadas.

Charles Babbage e Ada Lovelace formaram uma das parcerias intelectuais mais extraordinárias da história. Juntos, eles conceberam conceitos e ideias que prefiguraram os computadores modernos com impressionante precisão. Babbage, com seu gênio para o design mecânico, e Lovelace, com sua excepcional capacidade de abstração matemática, complementaram-se de maneira perfeita, criando um legado que transcendeu em muito seu próprio tempo.

Charles Babbage: o homem à frente de seu tempo

Charles Babbage nasceu em Londres em 26 de dezembro de 1791, em uma família abastada. Seu pai, Benjamin Babbage, era um banqueiro, o que garantiu a Charles uma educação privilegiada. Desde jovem, Babbage demonstrou uma curiosidade insaciável e um talento especial para a matemática.

Ao ingressar no Trinity College, em Cambridge, em 1810, Babbage ficou desapontado com o nível do ensino de matemática na universidade. Este desapontamento o levou a formar, junto com outros estudantes, a Sociedade Analítica, dedicada a promover a análise matemática de Leibniz em detrimento do método geométrico newtoniano que então dominava em Cambridge.

Esta experiência inicial de questionar o estabelecido e buscar melhores métodos seria um tema recorrente ao longo de sua vida. Babbage não se contentava em aceitar as limitações existentes; ele constantemente imaginava como as coisas poderiam ser aprimoradas.

O problema das tabelas matemáticas

A semente que levaria à grande obsessão de Babbage -- as máquinas de cálculo -- foi plantada em 1812 durante seus anos de estudante. Enquanto trabalhava em cálculos astronômicos com seu amigo John Herschel (filho do famoso astrônomo William Herschel), Babbage expressou sua frustração com os erros encontrados nas tabelas matemáticas da época.

As tabelas matemáticas -- compilações de valores precalculados de funções como logaritmos, funções trigonométricas e polinomiais -- eram ferramentas essenciais para astrônomos, navegadores, engenheiros e cientistas. Estas tabelas eram calculadas e copiadas manualmente, um processo propenso a erros. Um único erro em uma tabela podia se propagar para todos os cálculos baseados nela, potencialmente causando desastres em aplicações como navegação marítima.

Durante esta discussão com Herschel, Babbage teria exclamado: "Queria que estes cálculos pudessem ser feitos por vapor!" Esta expressão de desejo, meio em brincadeira, meio a sério, revelava sua visão de que processos mecânicos poderiam superar as limitações da computação humana.

Nos anos seguintes, esta ideia continuou a fermentar em sua mente, levando-o a conceber a primeira de suas máquinas revolucionárias: a Máquina de Diferenças.

A Máquina de Diferenças: automatizando a matemática

Em 1822, Babbage apresentou à Royal Astronomical Society um artigo intitulado "Nota sobre a aplicação de maquinaria ao cálculo de tabelas astronômicas e matemáticas", no qual descrevia sua visão para uma máquina capaz de calcular e imprimir automaticamente tabelas matemáticas precisas.

O método das diferenças finitas

A Máquina de Diferenças baseava-se no método matemático conhecido como "diferenças finitas". Este método permite calcular valores de polinômios usando apenas adição, evitando as operações mais complexas de multiplicação e divisão, que seriam mecanicamente mais difíceis de implementar.

Para entender o princípio básico, considere uma função polinomial simples como f(x) = x². Se calculamos esta função para valores inteiros consecutivos de x, obtemos:

  • f(0) = 0

  • f(1) = 1

  • f(2) = 4

  • f(3) = 9

  • f(4) = 16

Se tomarmos as diferenças entre valores consecutivos, obtemos:

  • 1 - 0 = 1

  • 4 - 1 = 3

  • 9 - 4 = 5

  • 16 - 9 = 7

Observe que estas diferenças formam uma sequência: 1, 3, 5, 7... Se calcularmos as diferenças desta nova sequência, obtemos:

  • 3 - 1 = 2

  • 5 - 3 = 2

  • 7 - 5 = 2

Agora temos uma sequência constante: 2, 2, 2... Esta propriedade dos polinômios -- que eventualmente produzem uma sequência constante de diferenças -- é o que permitia à Máquina de Diferenças gerar tabelas de valores.

O design mecânico

A Máquina de Diferenças era um dispositivo puramente mecânico, consistindo em uma série de eixos verticais, cada um contendo rodas numeradas para representar os dígitos. Cada eixo correspondia a uma coluna da tabela de diferenças, e a operação da máquina envolvia a adição contínua de valores entre colunas adjacentes.

O design incluía um mecanismo para "propagar o transporte" quando uma adição resultava em um valor maior que 9, muito semelhante ao mecanismo que Pascal havia implementado em sua calculadora. Além disso, a máquina incorporava um dispositivo de impressão automática, que transferiria os resultados calculados diretamente para uma placa metálica usada para impressão, eliminando a possibilidade de erros na transcrição manual.

No papel, a Máquina de Diferenças era capaz de calcular valores de polinômios de até sexto grau com precisão de 20 dígitos -- uma capacidade impressionante que superava em muito o que um calculador humano poderia fazer em termos de velocidade e precisão.

Apoio governamental e os desafios da implementação

O projeto de Babbage chamou a atenção do governo britânico, que em 1823 concedeu-lhe um financiamento inicial de £1.500 (uma soma considerável na época) para construir um protótipo. Este apoio foi motivado pelas implicações práticas da máquina: tabelas matemáticas precisas eram essenciais para a navegação, e a Grã-Bretanha, como potência naval dominante, tinha um interesse estratégico em aprimorá-las.

No entanto, a construção da Máquina de Diferenças provou ser muito mais desafiadora do que Babbage havia inicialmente previsto. O nível de precisão mecânica necessário era extraordinário -- muito além das capacidades padrão da engenharia da época. Babbage, um perfeccionista, recusava-se a comprometer seu design visionário para acomodar as limitações tecnológicas existentes.

Além disso, à medida que o projeto avançava, Babbage continuamente revisava e refinava seus planos, tornando-os mais ambiciosos. Estas mudanças constantes, combinadas com a complexidade inerente do projeto, levaram a atrasos contínuos e ao aumento dos custos.

Em 1832, um pequeno protótipo demonstrativo foi concluído, mostrando a viabilidade do conceito. No entanto, a máquina completa, que teria aproximadamente 25.000 peças e pesaria várias toneladas, nunca foi concluída durante a vida de Babbage, apesar do governo britânico ter investido cerca de £17.000 no projeto antes de finalmente abandoná-lo em 1842.

O Arithmometer: um caminho paralelo para a automação do cálculo

Enquanto Babbage lutava com os desafios técnicos e financeiros de sua Máquina de Diferenças, do outro lado do Canal da Mancha, na França, outro inventor seguia um caminho diferente mas complementar para a automação dos cálculos. Charles Xavier Thomas de Colmar, um empresário do setor de seguros, havia patenteado em 1820 uma máquina que chamou de "Arithmometer" -- a primeira calculadora mecânica que se tornaria comercialmente viável.

Ao contrário das grandiosas ambições de Babbage, Thomas de Colmar focou na praticidade e na robustez. Seu Arithmometer, baseado no mecanismo de tambor escalonado de Leibniz, podia realizar as quatro operações aritméticas básicas -- adição, subtração, multiplicação e divisão -- de forma confiável e repetitiva. A máquina foi aprimorada ao longo de décadas, e em 1851, Thomas de Colmar lançou uma versão comercialmente viável que se tornaria o padrão da indústria. Por 40 anos, de 1851 a 1890, o Arithmometer foi o único tipo de calculadora mecânica em produção comercial, sendo vendido em todo o mundo para bancos, companhias de seguro, escritórios governamentais e observatórios. Esta realização demonstrava que havia uma demanda real e crescente por automação de cálculos, validando em escala comercial muitas das visões que Babbage havia articulado teoricamente.

A Máquina Analítica: o primeiro computador conceitual

Mesmo enquanto trabalhava na Máquina de Diferenças, a mente inquieta de Babbage já concebia algo muito mais ambicioso. Por volta de 1834, ele começou a desenvolver ideias para o que chamou de "Máquina Analítica" -- um dispositivo que seria nada menos que o primeiro computador de propósito geral da história, mesmo que apenas no conceito.

A inspiração do tear de Jacquard

Como mencionamos no post anterior, Babbage foi profundamente inspirado pelo tear de Jacquard. Durante uma visita a uma fábrica têxtil em 1834, ele ficou impressionado com como os cartões perfurados podiam controlar padrões complexos de tecelagem. Esta experiência foi um momento decisivo, levando-o a perceber que o mesmo princípio poderia ser aplicado a sua nova máquina: os cartões perfurados poderiam ser usados para fornecer instruções à máquina, permitindo que ela realizasse qualquer tipo de cálculo, não apenas aqueles para os quais foi especificamente construída.

Em suas próprias palavras: "A distinção entre operações e números é a base de que surgiu a Máquina Analítica... Para este propósito foram adaptados dois conjuntos de cartões, similarmente perfurados, um para dirigir as operações e o outro para as variáveis."

Arquitetura revolucionária

A Máquina Analítica, como Babbage a concebia, tinha uma estrutura notavelmente similar aos computadores modernos, com quatro componentes principais:

  1. O Moinho (Mill): Equivalente à Unidade Central de Processamento (CPU) dos computadores modernos, o Moinho era o componente onde todas as operações aritméticas seriam realizadas.

  2. O Armazém (Store): Este componente seria responsável por armazenar números -- tanto dados de entrada quanto resultados intermediários -- sendo essencialmente a memória da máquina. Babbage planejava uma capacidade para mil números de 50 dígitos cada, uma quantidade impressionante de memória para a época.

  3. O Operador (Operator): Este componente interpretaria as instruções fornecidas através dos cartões perfurados, determinando quais operações o Moinho deveria realizar -- o equivalente à unidade de controle em computadores modernos.

  4. Unidades de Entrada/Saída: A máquina receberia dados através de cartões perfurados e produziria resultados através de um dispositivo de impressão automática ou puncionando cartões para uso futuro.

Mais revolucionário ainda, a Máquina Analítica seria capaz de desvios condicionais -- a máquina poderia comparar dois números e, com base no resultado, decidir qual sequência de instruções seguir. Esta capacidade, que é fundamental para a programação moderna, permitiria que a máquina tomasse "decisões" baseadas em resultados intermediários, tornando-a verdadeiramente flexível e adaptável.

Além disso, os cartões de operação poderiam instruir a máquina a retroceder ou avançar, permitindo a execução de ciclos (loops) e sub-rotinas -- conceitos que são pilares da programação estruturada.

Uma visão que superou sua época

As ideias de Babbage para a Máquina Analítica eram tão avançadas que muitos de seus contemporâneos simplesmente não compreenderam seu potencial revolucionário. A máquina jamais foi construída durante sua vida, principalmente devido aos mesmos desafios técnicos e financeiros que impediram a conclusão da Máquina de Diferenças.

Ainda assim, Babbage desenvolveu planos detalhados, diagramas e notações para descrever a operação da máquina. Ele continuou refinando o design até sua morte em 1871, deixando milhares de páginas de notas e desenhos detalhados.

A Máquina Analítica era tão avançada conceitualmente que incorporava a maioria dos elementos da arquitetura de von Neumann, que se tornaria o modelo padrão para computadores apenas nos anos 1940, quase cem anos depois. Isso torna Babbage não apenas um inventor à frente de seu tempo, mas um verdadeiro visionário que antecipou o futuro da computação com uma precisão notável.

Os irmãos Scheutz: realizando o sonho de Babbage

Embora as próprias máquinas de Babbage nunca tenham sido completamente construídas durante sua vida, suas ideias inspiraram uma geração de inventores a buscar a automação do cálculo. Entre os mais notáveis estavam os irmãos suecos Georg e Edvard Scheutz, um pai advogado e publicador e seu filho engenheiro, que conseguiram realizar aquilo que o próprio Babbage não havia conseguido.

Georg Scheutz primeiro tomou conhecimento do trabalho de Babbage em 1834, através de um artigo detalhado de Dionysius Lardner sobre a Máquina de Diferenças. Inspirado pela visão de automação de cálculos, Georg recrutou seu filho adolescente Edvard, então estudante de engenharia mecânica, para um projeto ambicioso: construir sua própria versão funcional da máquina de diferenças. Trabalhando em seu ateliê em Estocolmo, os Scheutz passaram anos aperfeiçoando seu design, sendo pragmáticos onde Babbage era perfeccionista. Em 1843, eles completaram um protótipo funcional, e em 1853 construíram uma versão aprimorada e totalmente operacional de sua máquina de diferenças.

Longe de ver os Scheutz como rivais, Babbage os acolheu calorosamente e promoveu seus interesses, reconhecendo que eles haviam demonstrado a viabilidade prática de suas teorias. A máquina dos Scheutz foi exibida na Exposição Universal de Paris de 1855, vendida para o Observatório Dudley em Albany, Nova York, e usada para calcular tabelas matemáticas oficiais na Inglaterra. Embora os próprios Scheutz tenham morrido em dificuldades financeiras, seu sucesso provou definitivamente que as visões de Babbage não eram meramente teóricas, mas tecnicamente realizáveis com a engenharia da época.

Ada Lovelace: a visionária que viu além dos números

Se Charles Babbage forneceu o hardware conceitual para o primeiro computador, foi Ada Lovelace quem vislumbrou as possibilidades do software. Sua contribuição transcendeu os aspectos puramente técnicos da computação para vislumbrar as implicações mais amplas e profundas que as máquinas computacionais teriam no futuro.

Uma educação extraordinária

Augusta Ada Byron, posteriormente Condessa de Lovelace, nasceu em 10 de dezembro de 1815 em Londres. Ela era filha do famoso poeta Lord Byron e de Anne Isabella Milbanke, uma mulher educada com forte interesse em matemática, a quem Byron chamava jocosamente de "princesa dos paralelogramos" devido a seu amor pela geometria.

O casamento dos pais de Ada foi breve e tumultuado. Lord Byron deixou a Inglaterra quando Ada tinha apenas cinco semanas de idade, e nunca mais a viu. Ele morreria na Grécia quando Ada tinha oito anos. Temendo que Ada herdasse o temperamento poético e impulsivo do pai, Lady Byron organizou para a filha uma educação rigorosa, com forte ênfase em matemática e ciências -- disciplinas consideradas extraordinárias para uma jovem mulher da aristocracia na Inglaterra vitoriana.

Ada teve tutores notáveis, incluindo Mary Somerville, uma das poucas mulheres cientistas reconhecidas na época, e Augustus De Morgan, um dos matemáticos mais importantes da Inglaterra. Esta educação excepcional, combinando rigor matemático com ampla exposição a ideias intelectuais diversas, preparou Ada para sua futura colaboração histórica com Babbage.

O encontro com Babbage e o início da colaboração

O primeiro encontro entre Ada Lovelace e Charles Babbage ocorreu em junho de 1833, durante uma festa em Londres. Ada, então com 17 anos, já demonstrava um interesse profundo pela matemática. Babbage, impressionado com sua inteligência e entusiasmo, convidou-a para ver o protótipo parcial de sua Máquina de Diferenças. Este encontro marcou o início de uma amizade e colaboração intelectual que duraria até a morte de Ada em 1852.

Nos anos seguintes, Ada e Babbage mantiveram uma correspondência regular, discutindo matemática e as evoluções dos planos para a Máquina Analítica. Babbage encontrou em Ada não apenas uma admiradora entusiástica de seu trabalho, mas uma mente que poderia compreender plenamente e até expandir suas visões.

As Notas sobre a Máquina Analítica

A contribuição mais significativa de Ada Lovelace para a história da computação veio em 1843. Naquele ano, o engenheiro e futuro primeiro-ministro italiano Luigi Federico Menabrea publicou um artigo em francês sobre a Máquina Analítica de Babbage, baseado em palestras que Babbage havia proferido na Itália.

Ada traduziu este artigo para o inglês, mas não se limitou a uma simples tradução. A pedido de Babbage, ela adicionou suas próprias notas e comentários, que acabaram sendo três vezes mais extensos que o artigo original. Estas "Notas" constituem um dos documentos mais importantes na história inicial da computação.

Nas suas notas, Ada demonstrou uma compreensão profunda da Máquina Analítica, explicando seu funcionamento de maneira mais clara e acessível que o próprio Babbage. Mas ela foi além da mera explicação técnica, vislumbrando possibilidades que nem mesmo Babbage havia articulado claramente.

O primeiro programa de computador

A Nota G, a mais famosa das adições de Ada ao texto de Menabrea, contém o que é amplamente reconhecido como o primeiro algoritmo projetado para ser processado por uma máquina -- o primeiro programa de computador da história. Este algoritmo calculava os números de Bernoulli, uma sequência complexa com importância em diversas áreas da matemática.

O programa de Ada era notavelmente sofisticado, incluindo loops (o que ela chamava de "ciclos de operações") e manipulação simbólica. Ela explicou meticulosamente como os cartões de operação e variável interagiriam para guiar a máquina através dos cálculos necessários, demonstrando uma compreensão clara dos princípios da programação estruturada, muito antes de este conceito ser formalmente definido.

O mais impressionante é que Ada desenvolveu este programa para uma máquina que ainda não existia fisicamente, baseando-se apenas em descrições e planos. Esta capacidade de abstração -- de visualizar e formalizar um processo computacional puramente na mente -- é uma das marcas de um programador verdadeiramente talentoso mesmo nos dias atuais.

A visão que transcendeu os números

Talvez a contribuição mais profunda de Ada Lovelace não tenha sido seu programa pioneiro, mas sua visão extraordinária do potencial das máquinas computacionais. Em um tempo em que as máquinas de cálculo eram vistas estritamente como ferramentas para manipular números, Ada percebeu que os princípios de computação poderiam ser aplicados a qualquer coisa que pudesse ser simbolicamente representada.

Em suas próprias palavras: "A Máquina Analítica não tem qualquer pretensão de originar nada. Ela pode fazer tudo o que soubermos ordenar-lhe para realizar... Seu papel é nos ajudar a disponibilizar o que já conhecemos."

E, mais visionária ainda: "A Máquina Analítica poderia agir sobre outras coisas além de números... Supondo, por exemplo, que as relações fundamentais dos sons pitorescos na ciência da harmonia e da composição musical fossem suscetíveis de tais expressões e adaptações, a máquina poderia compor peças musicais elaboradas e científicas de qualquer grau de complexidade ou extensão."

Com esta visão, Ada antecipou em mais de um século a ideia de que computadores poderiam processar não apenas números, mas símbolos, textos, imagens e sons -- o conceito de computação universal que é a base da revolução digital contemporânea.

Ela também previu, com notável clareza, as limitações fundamentais das máquinas computacionais: "A Máquina Analítica não tem qualquer pretensão de originar nada." Esta distinção entre a capacidade humana de criação original e as capacidades das máquinas para executar procedimentos bem definidos permanece relevante mesmo na era atual de inteligência artificial avançada.

Um legado interrompido prematuramente

Tragicamente, a brilhante mente de Ada Lovelace foi silenciada cedo demais. Ela faleceu em 27 de novembro de 1852, aos 36 anos, devido a um câncer uterino, a mesma idade em que seu pai, Lord Byron, havia morrido. Sua morte prematura não apenas privou o mundo de mais contribuições potenciais, mas também contribuiu para que seu trabalho permanecesse obscuro por muitas décadas.

Charles Babbage sobreviveu a Lovelace por quase vinte anos, continuando a refinar seus projetos, mas sem conseguir construir suas máquinas. Ele morreu em 1871, largamente não reconhecido por suas contribuições revolucionárias.

A redescoberta e o legado duradouro

Por quase um século após suas mortes, os trabalhos de Babbage e Lovelace permaneceram largamente esquecidos. A maioria dos pioneiros da computação eletrônica nas décadas de 1930 e 1940 não estava ciente de seus antecessores vitorianos.

A verdadeira reivindicação das visões de Babbage e Lovelace começou na década de 1970, à medida que a história da computação se tornava um campo de estudo sério. O historiador da tecnologia I. Bernard Cohen e outros começaram a trazer à luz a extensão e a profundidade de suas contribuições.

Em 1991, o Science Museum de Londres construiu uma versão funcional da Máquina de Diferenças Nº 2 de Babbage, usando apenas os materiais e métodos disponíveis no século XIX. A máquina funcionou perfeitamente, provando que o design de Babbage era fundamentalmente sólido, e que apenas limitações práticas -- não conceituais -- impediram sua realização em sua própria época.

O legado de Ada Lovelace tem sido cada vez mais reconhecido e celebrado. Em 1980, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos nomeou uma linguagem de programação em sua homenagem -- Ada, uma linguagem de alto nível projetada para sistemas críticos de segurança. Desde 2009, o segundo terço de outubro é celebrado internacionalmente como o Dia de Ada Lovelace, destacando as contribuições das mulheres para as ciências da computação.

Mais importante que estas homenagens formais é o reconhecimento de como Babbage e Lovelace, em sua extraordinária parceria intelectual, estabeleceram as bases conceituais para a revolução computacional que transformaria o mundo mais de um século depois. Eles provaram que a visão pode transcender as limitações técnicas de uma época, e que ideias verdadeiramente revolucionárias podem permanecer dormentes por gerações antes de finalmente florescerem.

Lições para a era digital

A história de Babbage e Lovelace oferece várias lições profundas para nossa era digital:

A importância da visão de longo prazo

Em um tempo em que a inovação tecnológica é frequentemente orientada para resultados comerciais imediatos, a história de Babbage e Lovelace nos lembra o valor da visão de longo prazo. Eles criaram conceitos que não podiam ser plenamente realizados em sua própria época, mas que estabeleceram as bases para realizações futuras extraordinárias.

A interdisciplinaridade como fonte de inovação

Ada Lovelace combinava conhecimentos de matemática, lógica, música e poesia. Sua educação abrangente, cruzando as fronteiras entre "ciências" e "humanidades", permitiu-lhe vislumbrar possibilidades que escapavam a mentes mais estritamente especializadas. Numa era de crescente especialização, o exemplo de Lovelace destaca o valor da fertilização cruzada entre diferentes campos do conhecimento.

A diversidade de perspectivas

O fato de Ada Lovelace, como mulher em uma época de profunda desigualdade de gênero, ter fornecido insights únicos que escaparam até mesmo ao brilhante Babbage, ilustra como diversas perspectivas enriquecem a inovação. Sua visão de que computadores poderiam um dia manipular símbolos e até criar música foi em parte informada por sua educação única, que integrava ciências e artes de uma maneira incomum para a época.

O valor das parcerias intelectuais

A colaboração entre Babbage e Lovelace demonstra como parcerias intelectuais podem produzir ideias que transcendem o que cada indivíduo poderia alcançar sozinho. Babbage, o engenheiro visionário, e Lovelace, a matemática-poetisa, complementaram-se perfeitamente, combinando o concreto e o abstrato, o mecânico e o algorítmico.

O que vem a seguir?

No próximo post de nossa série, exploraremos como os fundamentos teóricos da computação moderna foram estabelecidos através das contribuições de três mentes brilhantes que transformaram a matemática e a lógica: George Boole, Alan Turing e Claude Shannon. Veremos como a álgebra booleana, a máquina de Turing e a teoria da informação criaram a base conceitual que possibilitaria a revolução da computação no século XX.

Prepare-se para descobrir como abstrações matemáticas aparentemente distantes do mundo das máquinas se tornaram os alicerces teóricos sobre os quais toda a computação moderna está construída!

Equipe Quantum Road
15/04/2025

Imagens e Ilustrações

Máquina de diferenças / Máquina analítica de Babbage

Arithmometer de Thomas de Colmar

Referências

[1] A. Hyman, "Charles Babbage: Pioneer of the Computer", Princeton University Press, 1982.

[2] B. Collier, "The Little Engines That Could've: The Calculating Machines of Charles Babbage", Garland Publishing, 1990.

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[6] M. Lindgren, "Glory and Failure: The Difference Engines of Johann Müller, Charles Babbage and Georg and Edvard Scheutz", MIT Press, 1990.

[7] U. C. Merzbach, "Georg Scheutz and the First Printing Calculator", Smithsonian Studies in History and Technology, 1977.

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[10] B. Toole, "Ada, the Enchantress of Numbers: Prophet of the Computer Age", Strawberry Press, 1992.

[11] D. Huskey & H. D. Huskey, "Lady Lovelace and Charles Babbage", Annals of the History of Computing, 1980.

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[13] M. Campbell-Kelly, "The Works of Charles Babbage", Pickering & Chatto, 1989.

[14] S. Snyder, "The Philosophical Breakfast Club: Four Remarkable Friends Who Transformed Science and Changed the World", Broadway Books, 2011.

[15] M. R. Williams, "A History of Computing Technology", IEEE Computer Society Press, 1997.

Fontes de Imagens

https://www.reddit.com/r/RedditDayOf/comments/6o8pxd/the_difference_engine_considered_the_first/?tl=pt-br

https://collection.sciencemuseumgroup.org.uk/objects/co60390/thomas-de-colmars-arithmometer-c-1870-with-detachable-lid